sábado, 2 de junho de 2007

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Ainda nos anos 60, o escritor e humorista Millôr Fernandes disse ser Chico Buarque “a única unanimidade nacional”. Com o mesmo tom, o também escritor, Fernando Paixão falou sobre Fernando Pessoa: “O mito se reduplica, chega a arrebatar uma unanimidade inquietante. O fato é que a poesia de Pessoa resultou num fenômeno único”.

Não é só no fator hors concours que os autores tema desse artigo se parecem. O português e o brasileiro se aproximam, primeiramente, na diversidade de enfoques narrativos presentes em suas obras.
Pessoa, com seus heterônimos, dividiu-se em diversas identidades, cada uma com história, linguagem e estilo diferente das demais. Escreveu, em prosa autobiográfica, a explicação dessa consciente opção pela fragmentação da personalidade:
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.
Chico Buarque, por sua vez, surpreende-nos com os inúmeros personagens de suas canções (em primeira pessoa – ou não), com destaque para a esfericidade dos papéis femininos. Buarque não se fragmentou formalmente em heterônimos, o quer dizer que não atribuiu às personagens a autoria de suas canções, o que não descredita a complexidade e a plausibilidade do discurso delas. [Vale ressaltar que o músico usou, em três composições, o pseudônimo Julinho de Adelaide como forma de driblar a censura do regime militar brasileiro. No entanto, nestas canções não há características diferentes daquelas que seriam assinadas com seu ortônimo]
“O imaginário para ele é fácil. Sua capacidade de se transportar, de não ter pele, de viajar e entrar no outro, é imensa”, disse Miúcha sobre o irmão.

Destaquemos agora a palavra imaginário. Nosso músico nacional repete em entrevistas que “tentar associar obra e vida glamouriza a biografia, mas empobrece a criatividade”. Faz questão de estabelecer que tudo, todos que ele canta e, em especial, todas para quem canta são inventados, fruto de sua fértil imaginação, como explicou sua irmã.
Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, escreveu:
“o estudo a meu respeito peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".
Também poeta, Ferreira Gullar, analisa a declaração de Pessoa, somente para aproximá-la daquela que ouvimos repetidamente de nosso compositor:
“Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra [...] Ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida.”

Tanto na obra de Buarque quanto na de Pessoa, notamos que essa pluralidade que os define atinge seu ponto máximo quando suas composições dialogam entre si.
É o caso de Samba de Orly, narrada por um eu-poético alocado na Europa, mandando lembranças àqueles no Brasil; enquanto, em Meu Caro Amigo, o eu-poético estaria no Brasil, enviando notícias para um amigo exilado.
Nos versos de Tabacaria, Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos) questiona:
Que sei eu do que serei,
Eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso em ser tanta coisa!
E o Ricardo Reis em Pessoa, revela a solução em Vivem em nós inúmeros:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.


José Saramago escreveu, em 1997:
"[...] um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira [...]”*
E, cerca de três anos:
“[...] ousou muito, cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer.”**

Eu creio que seria difícil adivinhar a quem o ganhador do prêmio Nobel de literatura se referia em cada ocasião. Seria possível que, nos dois momentos, nos lembrasse o poeta português; ou que aclamasse nosso músico.
Ou, ainda, seria possível que elogiasse os dois nos trechos transcritos aqui e com elogios tão semelhantes, expressos em palavras tão próximas, que assinaria esse paralelo que tentei estabelecer.

Eu acredito que, talvez, Chico Buarque seja o único ícone de cultura em língua portuguesa a se aproximar de Fernando Pessoa.
Assim como, talvez, Fernando Pessoa tenha sido o único a se aproximar de Chico Buarque.
E tenho a sensação que Saramago concorda comigo.


Rafa


* Sobre Fernando Pessoa, em Cadernos de Lanzarote.
** Sobre Chico Buarque, na contra-capa da edição portuguesa do livro Budapeste.

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