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Ainda nos anos 60, o escritor e humorista Millôr Fernandes disse ser Chico Buarque “a única unanimidade nacional”. Com o mesmo tom, o também escritor, Fernando Paixão falou sobre Fernando Pessoa: “O mito se reduplica, chega a arrebatar uma unanimidade inquietante. O fato é que a poesia de Pessoa resultou num fenômeno único”.
Não é só no fator hors concours que os autores tema desse artigo se parecem. O português e o brasileiro se aproximam, primeiramente, na diversidade de enfoques narrativos presentes em suas obras.
Pessoa, com seus heterônimos, dividiu-se em diversas identidades, cada uma com história, linguagem e estilo diferente das demais. Escreveu, em prosa autobiográfica, a explicação dessa consciente opção pela fragmentação da personalidade:
“Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.
Chico Buarque, por sua vez, surpreende-nos com os inúmeros personagens de suas canções (em primeira pessoa – ou não), com destaque para a esfericidade dos papéis femininos. Buarque não se fragmentou formalmente em heterônimos, o quer dizer que não atribuiu às personagens a autoria de suas canções, o que não descredita a complexidade e a plausibilidade do discurso delas. [Vale ressaltar que o músico usou, em três composições, o pseudônimo Julinho de Adelaide como forma de driblar a censura do regime militar brasileiro. No entanto, nestas canções não há características diferentes daquelas que seriam assinadas com seu ortônimo]
“O imaginário para ele é fácil. Sua capacidade de se transportar, de não ter pele, de viajar e entrar no outro, é imensa”, disse Miúcha sobre o irmão.
Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, escreveu:
Também poeta, Ferreira Gullar, analisa a declaração de Pessoa, somente para aproximá-la daquela que ouvimos repetidamente de nosso compositor:
“Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra [...] Ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida.”
Tanto na obra de Buarque quanto na de Pessoa, notamos que essa pluralidade que os define atinge seu ponto máximo quando suas composições dialogam entre si.
É o caso de Samba de Orly, narrada por um eu-poético alocado na Europa, mandando lembranças àqueles no Brasil; enquanto, em Meu Caro Amigo, o eu-poético estaria no Brasil, enviando notícias para um amigo exilado.
Nos versos de Tabacaria, Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos) questiona:
Eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso em ser tanta coisa!
E o Ricardo Reis em Pessoa, revela a solução em Vivem em nós inúmeros:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
José Saramago escreveu, em 1997:
"[...] um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira [...]”*
E, há cerca de três anos:
“[...] ousou muito, cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer.”**
Eu creio que seria difícil adivinhar a quem o ganhador do prêmio Nobel de literatura se referia em cada ocasião. Seria possível que, nos dois momentos, nos lembrasse o poeta português; ou que aclamasse nosso músico.
Ou, ainda, seria possível que elogiasse os dois nos trechos transcritos aqui e com elogios tão semelhantes, expressos em palavras tão próximas, que assinaria esse paralelo que tentei estabelecer.
Eu acredito que, talvez, Chico Buarque seja o único ícone de cultura em língua portuguesa a se aproximar de Fernando Pessoa.
Assim como, talvez, Fernando Pessoa tenha sido o único a se aproximar de Chico Buarque.
E tenho a sensação que Saramago concorda comigo.
** Sobre Chico Buarque, na contra-capa da edição portuguesa do livro Budapeste.
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