domingo, 10 de junho de 2007

A de sempre

Carlos Drummond de Andrade

— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.

— O preço?

— Não. A variedade. O embarras du choix.

— Mas se você já estava acostumado com uma...

— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.

— E aí?

— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.

— Não quis dizer o nome?

— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?

— Mas que custa experimentar, homem de Deus?

— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?

— Mais ou menos.

— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?

— Você está divagando.

— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.

— Ou se percam.

— E se percam. Exatamente. O importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.

Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?

[Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, 1974]

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Às vezes, uma mudança é uma pedra no meio do caminho.

Há pessoas que devem até acreditar ser mais fácil machucar o pé chutando a pedra pra longe que mudar de percurso.

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Rafa

sábado, 2 de junho de 2007

[Vide imagem]

Ainda nos anos 60, o escritor e humorista Millôr Fernandes disse ser Chico Buarque “a única unanimidade nacional”. Com o mesmo tom, o também escritor, Fernando Paixão falou sobre Fernando Pessoa: “O mito se reduplica, chega a arrebatar uma unanimidade inquietante. O fato é que a poesia de Pessoa resultou num fenômeno único”.

Não é só no fator hors concours que os autores tema desse artigo se parecem. O português e o brasileiro se aproximam, primeiramente, na diversidade de enfoques narrativos presentes em suas obras.
Pessoa, com seus heterônimos, dividiu-se em diversas identidades, cada uma com história, linguagem e estilo diferente das demais. Escreveu, em prosa autobiográfica, a explicação dessa consciente opção pela fragmentação da personalidade:
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.
Chico Buarque, por sua vez, surpreende-nos com os inúmeros personagens de suas canções (em primeira pessoa – ou não), com destaque para a esfericidade dos papéis femininos. Buarque não se fragmentou formalmente em heterônimos, o quer dizer que não atribuiu às personagens a autoria de suas canções, o que não descredita a complexidade e a plausibilidade do discurso delas. [Vale ressaltar que o músico usou, em três composições, o pseudônimo Julinho de Adelaide como forma de driblar a censura do regime militar brasileiro. No entanto, nestas canções não há características diferentes daquelas que seriam assinadas com seu ortônimo]
“O imaginário para ele é fácil. Sua capacidade de se transportar, de não ter pele, de viajar e entrar no outro, é imensa”, disse Miúcha sobre o irmão.

Destaquemos agora a palavra imaginário. Nosso músico nacional repete em entrevistas que “tentar associar obra e vida glamouriza a biografia, mas empobrece a criatividade”. Faz questão de estabelecer que tudo, todos que ele canta e, em especial, todas para quem canta são inventados, fruto de sua fértil imaginação, como explicou sua irmã.
Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, escreveu:
“o estudo a meu respeito peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".
Também poeta, Ferreira Gullar, analisa a declaração de Pessoa, somente para aproximá-la daquela que ouvimos repetidamente de nosso compositor:
“Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra [...] Ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida.”

Tanto na obra de Buarque quanto na de Pessoa, notamos que essa pluralidade que os define atinge seu ponto máximo quando suas composições dialogam entre si.
É o caso de Samba de Orly, narrada por um eu-poético alocado na Europa, mandando lembranças àqueles no Brasil; enquanto, em Meu Caro Amigo, o eu-poético estaria no Brasil, enviando notícias para um amigo exilado.
Nos versos de Tabacaria, Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos) questiona:
Que sei eu do que serei,
Eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso em ser tanta coisa!
E o Ricardo Reis em Pessoa, revela a solução em Vivem em nós inúmeros:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.


José Saramago escreveu, em 1997:
"[...] um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira [...]”*
E, cerca de três anos:
“[...] ousou muito, cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer.”**

Eu creio que seria difícil adivinhar a quem o ganhador do prêmio Nobel de literatura se referia em cada ocasião. Seria possível que, nos dois momentos, nos lembrasse o poeta português; ou que aclamasse nosso músico.
Ou, ainda, seria possível que elogiasse os dois nos trechos transcritos aqui e com elogios tão semelhantes, expressos em palavras tão próximas, que assinaria esse paralelo que tentei estabelecer.

Eu acredito que, talvez, Chico Buarque seja o único ícone de cultura em língua portuguesa a se aproximar de Fernando Pessoa.
Assim como, talvez, Fernando Pessoa tenha sido o único a se aproximar de Chico Buarque.
E tenho a sensação que Saramago concorda comigo.


Rafa


* Sobre Fernando Pessoa, em Cadernos de Lanzarote.
** Sobre Chico Buarque, na contra-capa da edição portuguesa do livro Budapeste.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Fernando Pessoa

[Uma breve introdução]

O Dicionário Aurélio nos diz que, após o surgimento de Fernando Pessoa, a palavra "heterônimos" circularia com uma terceira acepção:
Outro nome, imaginário, que um homem de letras empresta a certas obras suas, atribuindo a esse autor por ele criado qualidades e tendências literárias próprias, individuais, diferentes das do criador.

Pessoa criou várias outras personalidades poéticas, com identidades e biografias escritas por ele e que são validadas pela manifestação poética própria destes "autores inventados", com suas características diferentes das do autor original - chamado de ortônimo. Nessa diferença entre as obras das criaturas e as do criador é que se caracteriza o heterônimo, distinto do (mais conhecido) pseudônimo.

Álvaro de Campos ("um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo"), Ricardo Reis ("estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, mudou-se para o Brasil em protesto à proclamação da República em Portugal") e Alberto Caeiro ("teve apenas a instrução primária, é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma 'não-filosofia', pois acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais - irritava-se com a metafísica ou qualquer tipo de simbologia para a vida") são os três heterônimos mais populares de Fernando Pessoa, talvez por assinarem um maior número de obras.


Vamos ao poema de hoje: um que engloba criador e criatura, em uma harmonia simbiótica.


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

- Ricardo Reis


Fernando Pessoa, possivelmente, ocuparia o primeiro ou o segundo lugar num ranking dos autores mais importante da língua portuguesa. Talvez atrás de Camões, talvez antes dele.
Portanto, em um blog chamado palavraboa, é inevitável que Pessoa apareça com certa freqüência.
Essa foi sua 2a. aparição aqui. E o próximo post já trará a 3a.


Rafa