quinta-feira, 10 de maio de 2007

A casa do Oscar

Chico Buarque - em Chico e as cidades:

A casa do Oscar era o sonho da família.
Havia o terreno para os lados do Iguatemi, havia o ante-projeto presente no próprio, havia a promessa de que, um belo dia, iríamos morar na casa do Oscar.
Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar.

Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno no Iguatemi. Deste modo, a casa do Oscar antes de existir foi demolida, ou ficou intacta, suspensa no ar como a casa do beco de Manuel Bandeira.
Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra a minha mãe e saí batendo a porta da nossa casa velha e normanda: "Só volto pra casa quando for a casa do Oscar!". Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguases, projeto do Oscar. Vivi um seis meses naquele casarão do Oscar, achei pouco.

Decidi ser o Oscar eu mesmo, regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia que me reprovou no exame oral, respondi calado: "Lá em casa tem um canudo com a casa do Oscar."

Depois, larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim.
Música de Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar.

--

Eu acho que Chico deveria ser avisado que suas palavras são casa do Oscar para muitos de nós.


Rafa

Dobrada à moda do Porto

[Álvaro de Campos - heterônimo de Fernando Pessoa]

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

--

Bottom line [pra mim]: podiam ter trazido a dobrada quente, podia ter saído de graça, podiam ter entendido por que motivo ela tinha de ser quente, mas, ainda assim, não foi isso que ele pediu.


Rafa

quarta-feira, 9 de maio de 2007

"Porque era ele. Porque era eu."

O escritor que cunhou o termo "ensaio", Montaigne, tinha o hábito de reler seus livros e republicá-los de tempos em tempos, corrigindo o que quer que houvesse mudado em seus conceitos.

Montaigne dedicou um de seus ensaios ao amigo La Boétie, autor que morrera ainda jovem. Em uma de suas releituras/republicações, resolveu expandir a dedicatória que dizia, simplesmente, "ao amigo La Boétie", para responder às perguntas sobre sua amizade, muito freqüentes. Escreveu, então: "Parce que c'etait lui" (Porque era ele).

Anos mais tarde, em uma nova releitura/republicação, acrescentou: "Parce que c'etait moi" (Porque era eu).

Essa era a explicação de Montaigne para a profunda amizade que o ligava a La Boétie. Ele não sabia explicar.

A frase "Porque era ele, porque era eu" resume todo o sentimento do gostar. É como dizer "eu gostava dele porque ele tinha tudo aquilo que me encantava... mas outros talvez não gostassem, porque eu tenho todas essas minhas características que me dão uma certa propensão para gostar exatamente do que ele tinha."

Essa é, certamente, a explicação mais coerente que eu já ouvi para o inexplicável.

Rafa

terça-feira, 8 de maio de 2007

Processo criativo - Valsinha II

De Chico Buarque para Vinícius de Moraes:

Caro poeta,

Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o "Apesar de Você". Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.

"Valsa hippie" é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo que há de hippie por aí. "Valsa hippie" ligado à filosofia hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia.
A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que se segue.Esse homem da primeira estrofe é o "anti-hippie". Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou "xingou" mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. "Convidou-a pra rodar" eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da trepada final. "Pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "para seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens.

Vamos lá: apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado, o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar", que ela não queria por causa do marido chato e quadrado.

Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.

Ainda baseado no argumento acima, prefiro o "abraçar" ao "bailar". Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.

A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheios de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora, estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o "em-e" numa sílaba só. Que é o mesmo problema do "começaram-a". Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente.

Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que deu bolo com o "Apesar de você", tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a "Tonga", mas a "Banda" vendeu mais que o disco do Toquinho solando "Primavera".

Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar,
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar,
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar...
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar,
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar,
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar,
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar...
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou,
E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou,
E foram tantos beijos loucos,
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais,
Que o mundo compreendeu,
E o dia amanheceu,
Em paz.

[Carta cedida por Chico Buarque para Caique Botkay, que a publicou no livro "Achados", em 2002 - uma coletânea de coisas nunca antes publicadas.]

Raízes do Brasil

"Com o declínio da velha lavoura e a quase concomitante ascensão dos centros urbanos, precipitada grandemente pela vinda, em 1808, da Corte portuguesa e depois pela Independência, os senhorios rurais principiam a perder muito de sua posição privilegiada e singular. Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as profissões liberais.

É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição.

Não parece absurdo relacionar a tal circunstância um traço constante de nossa vida social: a posição suprema que nela detêm, de ordinário, certas qualidades de imaginação e "inteligência", em prejuízo das manifestações do espírito prático ou positivo. O prestígio universal do "talento", com o timbre particular que recebe essa palavra nas regiões, sobretudo, onde deixou vinco mais forte a lavoura colonial e escravocrata, como o são eminentemente as do Nordeste do Brasil, provém sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo o simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades que requerem algum esforço físico.

O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo — a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais — mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação.

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido expressamente considerado, já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o nome de liberais dado a determinadas artes, e, oposição às mecânicas, que pertencem às classes servis."

Sérgio Buarque de Holanda - em Raízes do Brasil

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Ta explicada a absurda arrongância - aliás, ignorância - num tá?

Rafa

Processo criativo - Valsinha

De Vinícius de Moraes para Chico Buarque:

Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971

Chiquérrimo,

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio [Buarque de Hollanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.
Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes, o cara de fora vê melhor essas coisas.

Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa hippie", porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,
Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar,
E não falou mal da poesia como mania sua de falar,
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse:
- Vamos nos amar...
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar,
E pôs seu vestido dourado, cheirando a guardado de tanto esperar,
Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar,
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar...
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou,
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou,
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais,
Que o mundo compreendeu,
E o dia amanheceu em paz.


[Carta cedida por Chico Buarque para Caique Botkay, que a publicou no livro "Achados", em 2002 - uma coletânea de coisas nunca antes publicadas.]

segunda-feira, 7 de maio de 2007

A origem das palavras

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"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega fingir que é dor
A dor que deveras sente."

Fernando Pessoa

domingo, 6 de maio de 2007

Por que ser jornalista?

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"Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão, que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".


A opinião é de Gabriel Garcia Marquez e foi divulgada no Boletim do NPC, em agosto de 2005.