terça-feira, 8 de maio de 2007

Processo criativo - Valsinha

De Vinícius de Moraes para Chico Buarque:

Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971

Chiquérrimo,

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio [Buarque de Hollanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.
Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes, o cara de fora vê melhor essas coisas.

Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa hippie", porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,
Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar,
E não falou mal da poesia como mania sua de falar,
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse:
- Vamos nos amar...
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar,
E pôs seu vestido dourado, cheirando a guardado de tanto esperar,
Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar,
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar...
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou,
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou,
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais,
Que o mundo compreendeu,
E o dia amanheceu em paz.


[Carta cedida por Chico Buarque para Caique Botkay, que a publicou no livro "Achados", em 2002 - uma coletânea de coisas nunca antes publicadas.]

Um comentário:

Anônimo disse...

Rafa,
Adorei o seu Blog!Alem de enxuto e vizualmente bom de se ler, me trouxe informações do dialógo de Chico com Vinicius sobre Valsinha que eu não conhecia. Adoro os dois poetas e compositores.Na minha infanto-adolescência o Vinicius me fez um bem tremendo.Sua irreverência, seu romantismo e seu engajamento ( Operário em Construção) foram marcantes para a minha geração.Além do que, ninguém podia dizer que o poetinha era um grande cachaceiro desocupado das lides do trabalho e das grifes socialmente palatáveis. Afinal era o diplomata Vinicius de Moraes. Mas ja me alonguei mais do que a blogueira e devo parar! Parabéns e fico com a versão de Chico de Valsinha que é bem melhor! Falar nisto esta foi a música tema de um filme nacional chamado Cleo e Daniel, baseado na obra de Roberto Freire (o psicanalista e escritor e não o psicanalhista político pernambucano)
Beijão
Waldir