terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Palavras de fim

[Carlos Drummond de Andrade]

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

--

Sentimentos de começo.

Rafa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Palavras eternas

.
Soneto do amor total
[Vinícius de Moraes]

Amo-te tanto, meu amor, não cante
O humano coração com mais verdade
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente

E de te amar assim muito e a miúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

--

É a versão do poeta pra o já cansado "até que a morte nos separe".

Rafa

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Palavras de paciência

.
Amor e seu tempo
[Carlos Drummond de Andrade]


Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida.
Amor começa tarde.

--

Consolo pra quem, hoje em dia, anda dizendo que não sobra tempo pra nada.

Rafa

domingo, 16 de dezembro de 2007

Mais que palavras

[Eduardo Galeano, em O Livro dos Abraços]

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela.
Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva - sussurrou -
é feita de vinho.

Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei:
se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

--

Muito mais que pensamentos!

Rafa

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Palavras que incendeiam

[Eduardo Galeano – O Livro Dos Abraços]

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O mundo é isso – revelou. – um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.

--

Pessoas que (se) queimam.

Rafa.

Poucas palavras

[Eduardo Galeano – O Livro Dos Abraços]


A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.

--

Grandes verdades.

Rafa

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Palavras-professoras

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Você aprendeu que:

"O processo de Comunicação ocorre quando o emissor emite uma mensagem ao receptor, através de um canal (ou meio). O receptor interpretará a mensagem, que pode ter chegado até ele com algum tipo de barreira (ruído, bloqueio, filtragem) e, a partir daí, dará a resposta, completando o processo de comunicação.

As dificuldades de comunicação ocorrem quando as palavras têm graus distintos de abstração e variedade de sentido. O significado das palavras não está nelas mesmas, mas nas pessoas (no repertório de cada um, que lhe permite decifrar e interpretar as palavras). Às pessoas cabe reconhecer a mensagem e acessar outro pensamento."


E, agora, lê que:

"Na vida, não existem diálogos. O que existem são monólogos que têm como resposta outros monólogos. A vida é a eterna procura por um ovinte."

frase creditada a Nelson Rodrigues

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Tem coisas que só a vida ou os poetas ensinam corretamente.


Rafa

sábado, 8 de setembro de 2007

Palavras suficientes

[Clarice Lispector entrevista Pablo Neruda
- recorte de "Entrevistas"]

Clarice: O que é angústia?
Neruda: Sou feliz

Clarice: Escrever melhora a angústia de viver?
Neruda: Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.

Clarice: Quem é Deus?
Neruda: Todos, algumas vezes. Nada, sempre.

Clarice: Como é que você descreve um ser humano o mais complexo possível?
Neruda: Político, poético. Físico.

Clarice: Como é uma mulher bonita?
Neruda: Feita de muitas mulheres.

Clarice: Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento.
Neruda: Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?

Clarice: Em você o que precede a criação é a angústia ou um estado de graça?
Neruda: Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível.

Clarice: Diga alguma coisa que me surpreenda.
Neruda: 748.

Clarice: Que acha da literatura engajada?
Neruda: Toda literatura é engajada.

Clarice: Qual de seus livros você mais gosta?
Neruda: O próximo.

Clarice: A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o 'vulcão da América Latina'?
Neruda: Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.

Clarice: Como se processa em você a criação?
Neruda: Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.

Clarice: A crítica constrói?
Neruda: Para os outros, não para o criador.

Clarice: Você já fez algum poema de encomenda? Se o fez, faça um agora, mesmo que seja um bem curto.
Neruda: Muitos. São os melhores. Este é um poema.

Clarice: Qual é a coisa mais importante do mundo?
Neruda: Tratar de que o mundo seja digno para que todas as vidas humanas, não só para algumas.

Clarice: O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Neruda: Depende da hora do dia.

Clarice: O que é amor? Qualquer tipo de amor.
Neruda: A melhor definição seria: o amor é o amor.

Clarice: Você já sofreu muito por amor?
Neruda: Estou disposto a sofrer mais.


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Precisa dizer mais?
Não.
Precisa pensar mais.

Rafa

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Epigrama

.
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.
Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.
Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

Gregório de Mattos (1623-1696)

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As semelhanças com os dias atuais não devem ser mera coincidência.

domingo, 10 de junho de 2007

A de sempre

Carlos Drummond de Andrade

— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.

— O preço?

— Não. A variedade. O embarras du choix.

— Mas se você já estava acostumado com uma...

— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.

— E aí?

— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.

— Não quis dizer o nome?

— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?

— Mas que custa experimentar, homem de Deus?

— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?

— Mais ou menos.

— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?

— Você está divagando.

— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.

— Ou se percam.

— E se percam. Exatamente. O importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.

Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?

[Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, 1974]

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Às vezes, uma mudança é uma pedra no meio do caminho.

Há pessoas que devem até acreditar ser mais fácil machucar o pé chutando a pedra pra longe que mudar de percurso.

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Rafa

sábado, 2 de junho de 2007

[Vide imagem]

Ainda nos anos 60, o escritor e humorista Millôr Fernandes disse ser Chico Buarque “a única unanimidade nacional”. Com o mesmo tom, o também escritor, Fernando Paixão falou sobre Fernando Pessoa: “O mito se reduplica, chega a arrebatar uma unanimidade inquietante. O fato é que a poesia de Pessoa resultou num fenômeno único”.

Não é só no fator hors concours que os autores tema desse artigo se parecem. O português e o brasileiro se aproximam, primeiramente, na diversidade de enfoques narrativos presentes em suas obras.
Pessoa, com seus heterônimos, dividiu-se em diversas identidades, cada uma com história, linguagem e estilo diferente das demais. Escreveu, em prosa autobiográfica, a explicação dessa consciente opção pela fragmentação da personalidade:
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.
Chico Buarque, por sua vez, surpreende-nos com os inúmeros personagens de suas canções (em primeira pessoa – ou não), com destaque para a esfericidade dos papéis femininos. Buarque não se fragmentou formalmente em heterônimos, o quer dizer que não atribuiu às personagens a autoria de suas canções, o que não descredita a complexidade e a plausibilidade do discurso delas. [Vale ressaltar que o músico usou, em três composições, o pseudônimo Julinho de Adelaide como forma de driblar a censura do regime militar brasileiro. No entanto, nestas canções não há características diferentes daquelas que seriam assinadas com seu ortônimo]
“O imaginário para ele é fácil. Sua capacidade de se transportar, de não ter pele, de viajar e entrar no outro, é imensa”, disse Miúcha sobre o irmão.

Destaquemos agora a palavra imaginário. Nosso músico nacional repete em entrevistas que “tentar associar obra e vida glamouriza a biografia, mas empobrece a criatividade”. Faz questão de estabelecer que tudo, todos que ele canta e, em especial, todas para quem canta são inventados, fruto de sua fértil imaginação, como explicou sua irmã.
Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, escreveu:
“o estudo a meu respeito peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir".
Também poeta, Ferreira Gullar, analisa a declaração de Pessoa, somente para aproximá-la daquela que ouvimos repetidamente de nosso compositor:
“Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra [...] Ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida.”

Tanto na obra de Buarque quanto na de Pessoa, notamos que essa pluralidade que os define atinge seu ponto máximo quando suas composições dialogam entre si.
É o caso de Samba de Orly, narrada por um eu-poético alocado na Europa, mandando lembranças àqueles no Brasil; enquanto, em Meu Caro Amigo, o eu-poético estaria no Brasil, enviando notícias para um amigo exilado.
Nos versos de Tabacaria, Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos) questiona:
Que sei eu do que serei,
Eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso em ser tanta coisa!
E o Ricardo Reis em Pessoa, revela a solução em Vivem em nós inúmeros:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.


José Saramago escreveu, em 1997:
"[...] um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira [...]”*
E, cerca de três anos:
“[...] ousou muito, cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer.”**

Eu creio que seria difícil adivinhar a quem o ganhador do prêmio Nobel de literatura se referia em cada ocasião. Seria possível que, nos dois momentos, nos lembrasse o poeta português; ou que aclamasse nosso músico.
Ou, ainda, seria possível que elogiasse os dois nos trechos transcritos aqui e com elogios tão semelhantes, expressos em palavras tão próximas, que assinaria esse paralelo que tentei estabelecer.

Eu acredito que, talvez, Chico Buarque seja o único ícone de cultura em língua portuguesa a se aproximar de Fernando Pessoa.
Assim como, talvez, Fernando Pessoa tenha sido o único a se aproximar de Chico Buarque.
E tenho a sensação que Saramago concorda comigo.


Rafa


* Sobre Fernando Pessoa, em Cadernos de Lanzarote.
** Sobre Chico Buarque, na contra-capa da edição portuguesa do livro Budapeste.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Fernando Pessoa

[Uma breve introdução]

O Dicionário Aurélio nos diz que, após o surgimento de Fernando Pessoa, a palavra "heterônimos" circularia com uma terceira acepção:
Outro nome, imaginário, que um homem de letras empresta a certas obras suas, atribuindo a esse autor por ele criado qualidades e tendências literárias próprias, individuais, diferentes das do criador.

Pessoa criou várias outras personalidades poéticas, com identidades e biografias escritas por ele e que são validadas pela manifestação poética própria destes "autores inventados", com suas características diferentes das do autor original - chamado de ortônimo. Nessa diferença entre as obras das criaturas e as do criador é que se caracteriza o heterônimo, distinto do (mais conhecido) pseudônimo.

Álvaro de Campos ("um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo"), Ricardo Reis ("estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, mudou-se para o Brasil em protesto à proclamação da República em Portugal") e Alberto Caeiro ("teve apenas a instrução primária, é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma 'não-filosofia', pois acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais - irritava-se com a metafísica ou qualquer tipo de simbologia para a vida") são os três heterônimos mais populares de Fernando Pessoa, talvez por assinarem um maior número de obras.


Vamos ao poema de hoje: um que engloba criador e criatura, em uma harmonia simbiótica.


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

- Ricardo Reis


Fernando Pessoa, possivelmente, ocuparia o primeiro ou o segundo lugar num ranking dos autores mais importante da língua portuguesa. Talvez atrás de Camões, talvez antes dele.
Portanto, em um blog chamado palavraboa, é inevitável que Pessoa apareça com certa freqüência.
Essa foi sua 2a. aparição aqui. E o próximo post já trará a 3a.


Rafa

quinta-feira, 10 de maio de 2007

A casa do Oscar

Chico Buarque - em Chico e as cidades:

A casa do Oscar era o sonho da família.
Havia o terreno para os lados do Iguatemi, havia o ante-projeto presente no próprio, havia a promessa de que, um belo dia, iríamos morar na casa do Oscar.
Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar.

Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno no Iguatemi. Deste modo, a casa do Oscar antes de existir foi demolida, ou ficou intacta, suspensa no ar como a casa do beco de Manuel Bandeira.
Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra a minha mãe e saí batendo a porta da nossa casa velha e normanda: "Só volto pra casa quando for a casa do Oscar!". Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguases, projeto do Oscar. Vivi um seis meses naquele casarão do Oscar, achei pouco.

Decidi ser o Oscar eu mesmo, regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia que me reprovou no exame oral, respondi calado: "Lá em casa tem um canudo com a casa do Oscar."

Depois, larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim.
Música de Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar.

--

Eu acho que Chico deveria ser avisado que suas palavras são casa do Oscar para muitos de nós.


Rafa

Dobrada à moda do Porto

[Álvaro de Campos - heterônimo de Fernando Pessoa]

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

--

Bottom line [pra mim]: podiam ter trazido a dobrada quente, podia ter saído de graça, podiam ter entendido por que motivo ela tinha de ser quente, mas, ainda assim, não foi isso que ele pediu.


Rafa

quarta-feira, 9 de maio de 2007

"Porque era ele. Porque era eu."

O escritor que cunhou o termo "ensaio", Montaigne, tinha o hábito de reler seus livros e republicá-los de tempos em tempos, corrigindo o que quer que houvesse mudado em seus conceitos.

Montaigne dedicou um de seus ensaios ao amigo La Boétie, autor que morrera ainda jovem. Em uma de suas releituras/republicações, resolveu expandir a dedicatória que dizia, simplesmente, "ao amigo La Boétie", para responder às perguntas sobre sua amizade, muito freqüentes. Escreveu, então: "Parce que c'etait lui" (Porque era ele).

Anos mais tarde, em uma nova releitura/republicação, acrescentou: "Parce que c'etait moi" (Porque era eu).

Essa era a explicação de Montaigne para a profunda amizade que o ligava a La Boétie. Ele não sabia explicar.

A frase "Porque era ele, porque era eu" resume todo o sentimento do gostar. É como dizer "eu gostava dele porque ele tinha tudo aquilo que me encantava... mas outros talvez não gostassem, porque eu tenho todas essas minhas características que me dão uma certa propensão para gostar exatamente do que ele tinha."

Essa é, certamente, a explicação mais coerente que eu já ouvi para o inexplicável.

Rafa

terça-feira, 8 de maio de 2007

Processo criativo - Valsinha II

De Chico Buarque para Vinícius de Moraes:

Caro poeta,

Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o "Apesar de Você". Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.

"Valsa hippie" é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo que há de hippie por aí. "Valsa hippie" ligado à filosofia hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia.
A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que se segue.Esse homem da primeira estrofe é o "anti-hippie". Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou "xingou" mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. "Convidou-a pra rodar" eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da trepada final. "Pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "para seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens.

Vamos lá: apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado, o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar", que ela não queria por causa do marido chato e quadrado.

Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.

Ainda baseado no argumento acima, prefiro o "abraçar" ao "bailar". Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.

A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheios de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora, estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o "em-e" numa sílaba só. Que é o mesmo problema do "começaram-a". Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente.

Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que deu bolo com o "Apesar de você", tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a "Tonga", mas a "Banda" vendeu mais que o disco do Toquinho solando "Primavera".

Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar,
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar,
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar...
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar,
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar,
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar,
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar...
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou,
E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou,
E foram tantos beijos loucos,
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais,
Que o mundo compreendeu,
E o dia amanheceu,
Em paz.

[Carta cedida por Chico Buarque para Caique Botkay, que a publicou no livro "Achados", em 2002 - uma coletânea de coisas nunca antes publicadas.]

Raízes do Brasil

"Com o declínio da velha lavoura e a quase concomitante ascensão dos centros urbanos, precipitada grandemente pela vinda, em 1808, da Corte portuguesa e depois pela Independência, os senhorios rurais principiam a perder muito de sua posição privilegiada e singular. Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as profissões liberais.

É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição.

Não parece absurdo relacionar a tal circunstância um traço constante de nossa vida social: a posição suprema que nela detêm, de ordinário, certas qualidades de imaginação e "inteligência", em prejuízo das manifestações do espírito prático ou positivo. O prestígio universal do "talento", com o timbre particular que recebe essa palavra nas regiões, sobretudo, onde deixou vinco mais forte a lavoura colonial e escravocrata, como o são eminentemente as do Nordeste do Brasil, provém sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo o simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades que requerem algum esforço físico.

O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo — a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais — mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação.

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido expressamente considerado, já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o nome de liberais dado a determinadas artes, e, oposição às mecânicas, que pertencem às classes servis."

Sérgio Buarque de Holanda - em Raízes do Brasil

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Ta explicada a absurda arrongância - aliás, ignorância - num tá?

Rafa

Processo criativo - Valsinha

De Vinícius de Moraes para Chico Buarque:

Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971

Chiquérrimo,

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio [Buarque de Hollanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.
Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes, o cara de fora vê melhor essas coisas.

Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa hippie", porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,
Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar,
E não falou mal da poesia como mania sua de falar,
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse:
- Vamos nos amar...
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar,
E pôs seu vestido dourado, cheirando a guardado de tanto esperar,
Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar,
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar...
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou,
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou,
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais,
Que o mundo compreendeu,
E o dia amanheceu em paz.


[Carta cedida por Chico Buarque para Caique Botkay, que a publicou no livro "Achados", em 2002 - uma coletânea de coisas nunca antes publicadas.]

segunda-feira, 7 de maio de 2007

A origem das palavras

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"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega fingir que é dor
A dor que deveras sente."

Fernando Pessoa

domingo, 6 de maio de 2007

Por que ser jornalista?

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"Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão, que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".


A opinião é de Gabriel Garcia Marquez e foi divulgada no Boletim do NPC, em agosto de 2005.